Duas meninas do Brasil, literalmente, foram selecionadas pela FIA para integrarem um grupo de 20 mulheres pilotos do mundo todo. A finalidade é conseguir uma vaga na Academia de Pilotos Ferrari. Mas ao longo desta entrevista compreendi que Antonella Bassani, 14 anos, e Júlia Ayoub,15 anos, não são mais meninas. Falei com mulheres maduras, com uma força de vontade que vai muito além do gênero e da idade.
Vale lembrar que a Racing sempre valorizou a diversidade em seu prêmio Capacete de Ouro, o Oscar do automobilismo, como é chamado. Há muito tempo destacamos o trabalho sério e o talento das competidoras femininas. Essas profissionais não pensam em namorar, em ir a festas, em se produzirem para baladas, como fazem as adolescentes comuns. As pistas delas não são para dançar: são para acelerar!
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Antonella Bassani começou no kart com 4 anos. Julia Ayoub iniciou mais tarde, aos 11 anos (veja os destaques das carreiras no final desta entrevista). As duas mostram uma perseverança, força e objetivo que servem como lição de vida, e não apenas como qualidades para o automobilismo. Opiniões fortes como a de Antonella: “Sempre disputei com muitos meninos, e sei que posso vencê-los.” Ou a maturidade de Júlia Ayoub: “Eu já ouvi muitos pais de pilotos dando bronca nos filhos porque eles chegaram atrás de mim em uma corrida ou até mesmo em um treino. Mas isso era mais no início, hoje tenho o respeito da maioria.”
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As duas têm um propósito claro em mente: querem chegar à Fórmula 1. Justamente estão vendo nesta Seletiva da FIA a grande oportunidade para isso. Acompanhe abaixo a entrevista surpreendente com essas duas jovens pilotos. As respostas acontecem por ordem alfabética, com Antonella em primeiro, e com Júlia em segundo.
Como foi o início no automobilismo?
Antonella Bassani – Meu pai sempre gostou muito do automobilismo e, juntamente com meu Dindo (seu irmão), corriam de kart e em velocidade na terra. Desde muito pequena eu visitava as pistas. Mas com 4 anos e meio despertou o meu interesse por este meio. Uma tarde perguntei para o meu pai se poderia andar de kart, e foi aí que tudo começou. No início, eu disputei várias provas ao redor da região onde eu nasci (oeste catarinense). Depois de vários anos, meu pai decidiu me colocar em campeonatos maiores na região de São Paulo, para ver como eu me sairia. E dali em diante nunca mais parei.
Júlia Ayoub – Eu comecei tarde no kart, com 11 anos, em 2016, enquanto a maioria dos pilotos já tinha começado com 7 anos. Quem mais me motivou a entrar no automobilismo foi o meu pai, que é muito apaixonado pelo esporte a motor e corria de kart quando era mais jovem. Ele me deu a oportunidade de fazer um treino. E desde a primeira vez em que eu estive em um kart, me apaixonei pela adrenalina da velocidade. Estou correndo até agora.
O que te motivou a escolher um esporte tão masculino, até então?
Antonella Bassani – Nunca pensei como um esporte masculino. A primeira vez que eu sentei em um kart, eu era bem pequena. Então foi algo muito natural de ver aquilo e gostar demais. Depois, a adrenalina, o cheiro da gasolina, o ronco dos motores, tudo isso me faz muito bem. Não sei explicar direito, mas é uma sensação incrível.
Júlia Ayoub – Apesar do automobilismo ser um esporte majoritariamente masculino, para mim nunca foi um esporte de gênero. Então, desde a primeira vez que eu estive lá no meio, nem reparei muito nisso. Caí de cabeça, me dedicando sempre.
Existe alguma facilidade pelo fato de ser mulher? Por exemplo, conseguir outros tipos de patrocínios como o de cosméticos?
Antonella Bassani – Nossa, bem ao contrário. A facilidade por ser mulher está longe de acontecer. Ainda que, nestes últimos anos, o movimento feminista ganhou muita força ao redor do mundo. É claro que, com isso, começamos a ter um destaque maior neste meio dos patrocínios. Mas, ainda percebo que muitas empresas preferem patrocinar os pilotos homens do que as mulheres.
Júlia Ayoub – Eu não tenho mais facilidade por ser mulher. Claro que, hoje em dia, as mulheres estão muito em evidência. Isso faz surgir grandes oportunidades, como essa seletiva com a Ferrari. Mas não quer dizer que ser mulher traz privilégios no automobilismo.
Como lidar com um esporte que exige tanto e manter os estudos. É possível?
Antonella Bassani – É complicado, até por eu morar longe de praticamente tudo. Sempre tenho que sair uns dois ou três dias antes de uma competição começar, para ganhar uma folga. Caso alguma coisa dê errado, eu tenho tempo de arrumar a situação. Por conta disso, acabo perdendo muitas aulas, que geralmente são repostas depois com professores particulares, para que o conteúdo fique em dia.
Júlia Ayoub – É impossível conciliar o estudo presencial com a rotina de campeonatos dentro e fora do Brasil. Por isso, eu estudo à distância desde o ano passado e está dando super certo.
Como lidar com o machismo dos seus concorrentes? Ele existe?
Antonella Bassani – O machismo, principalmente no automobilismo, existe muito forte. A questão é que muitas pessoas ainda enxergam este esporte como algo para homens. E continuam vendo a figura feminina como algo frágil e delicado, sem o mesmo potencial que um homem para pilotar. Quanto aos meus concorrentes, eu percebi ao longo dos anos que esta visão machista foi se perdendo aos poucos. Mas infelizmente é impossível ela se extinguir totalmente. No passado, nos meus primeiros anos de competição, os meninos me batiam demais e faziam de tudo para me tirar das pistas. Ou forçando para que eu ganhasse punições, para que eles não perdessem de uma “menina”. Eu também percebia que esse medo de perder do sexo oposto, mais frágil, etc, era bastante imposto pelos pais desses pilotos. Ele ainda têm uma visão bem fechada sobre esse esporte para garotas.
Júlia Ayoub – O machismo existe sim. Eu já ouvi muitos pais de pilotos dando bronca nos filhos porque eles chegaram atrás de mim em uma corrida ou até mesmo em um treino. Muitas vezes fica difícil para eles me ultrapassarem de forma limpa. Então, um ou outro piloto prefere bater em mim e me tirar da corrida. Isso acontecia mais no início. Hoje em dia eu tenho um ótimo relacionamento com a maioria e eles me respeitam muito. Mas as batidas fazem parte das corridas e por isso eu tomo muito cuidado para não julgar errado só porque eu sou mulher.
Dá para conciliar com namoro? Ou namorado está fora de questão?
Antonella Bassani – No momento, está fora de questão.
Júlia Ayoub – Namorar está completamente fora dos meus planos, porque demanda muito tempo e muita disposição. Coisas que no, momento, definitivamente não tenho como me preocupar com isso.
Como foi essa entrada para a Seletiva da FIA, até chegar entre as 20 pilotos selecionadas no mundo?
Antonella Bassani – A primeira pessoa que me apresentou o programa foi a Bia Figueiredo. Por intermédio dela foram enviadas as documentações necessárias para a FIA e também o meu currículo de atleta. Através do currículo é que fui selecionada.
Júlia Ayoub – Eu entrei para essa seletiva graças à CBA e vou ser eternamente grata a eles por terem me indicado. A FIA pediu para as confederações dos países mandarem uma lista de pilotos que se encaixavam no Programa. E com base nessa lista, a Fia fez a seleção dos currículos das 70 pilotos inscritas. Desse total, eles selecionaram as 20 pilotos atuais para fazer parte do Programa.
Daqui para frente, será ainda mais complicado, para ser selecionada para a única vaga na Academia de Pilotos Ferrari? Exigirá muita preparação?
Antonella Bassani – Nossa, sem dúvida exigirá muito. Tenho procurado fazer o meu melhor, sempre muito focada. Por conta da pandemia, os campeonatos foram cancelados. Mas em minha cidade tem kartódromo e este tem se tornado a minha segunda casa. Treino muito de F4, Shifter, e Rotax. O que tiver em minhas mãos, estou acelerando. Fora do kartódromo, tenho treinos intensos com um personal para trabalhar a minha parte física e cardio. E estou com um professor particular de inglês, que vem em minha casa para intensificar o meu processo de aprendizagem do idioma. Além disso, faço alguns treinos no simulador e tenho assistido a documentários sobre pilotos que fizeram história no mundo do automobilismo. Isso serve como inspiração e incentivo.
Júlia Ayoub – Sem dúvida, a partir de outubro, os critérios da Seletiva vão exigir cada vez mais de cada piloto. Então, eu tenho que estar 100% preparada para todas as fases dessa seleção.
O que essa oportunidade representa para você, na sua carreira? O que você achou da atitude da FIA de abrir este espaço para as mulheres no automobilismo?
Antonella Bassani – Representa buscar um sonho! Com toda certeza quero estar em uma categoria de ponta do automobilismo internacional, criar história e inspirar cada dia mais mulheres a entrarem nesse mundo, que é fantástico. Os Fórmulas me encantam e não vejo a hora de acelerar! Começa agora um novo momento na minha carreira, que dirá muito sobre o futuro. Estou focada em sempre ser competitiva e procuro vitórias em qualquer corrida que participe. A FIA dá o exemplo. Achei muito legal o que fizeram, e considero importante que haja espaço para as mulheres em qualquer situação. Espero que com isso mais categorias sigam esse rumo. E que desenvolvam programas para termos mais mulheres participando das corridas, em condições dignas de vencer. Sempre disputei com muitos meninos, e sei que posso vencê-los.
Júlia Ayoub – Eu comecei no kartismo aos 11 anos e, logo aos 15 ter a oportunidade de participar de um Programa desse nível, representa o reconhecimento de todo o meu esforço até aqui, dentro e fora das pistas. Desde de 2009 essa comissão da FIA, Women in Motorsport, faz um trabalho incrível de inclusão das mulheres no esporte a motor. Apoiando com programas educacionais e sociais, promovendo muitas mulheres na mídia e mostrando que elas são reconhecidas pela autoridade máxima do automobilismo, que é a FIA. Em todos os níveis de automobilismo como pilotos, engenheiras e chefes de equipe. Ou seja, no que elas quiserem ser no esporte a motor. Eu estou muito feliz de fazer parte disso.
Quais são os seus sonhos no automobilismo? Chegar à Fórmula 1 é uma possibilidade?
Antonella Bassani – Chegar a Fórmula 1, por que não? Claro que é uma possibilidade, é um sonho que vou tentar alcançar. Talvez isso aconteça por essa porta que a FIA está abrindo. Está permitindo que as equipes famosas vejam não só eu, mas todas as mulheres como fortes talentos. Eu sonho alto, e o topo dessa lista é a Fórmula 1, sim. Se antes só os homens falavam deste sonho, agora as mulheres estão chegando também.
Júlia Ayoub – Meu sonho, sem dúvida, é chegar à Fórmula 1. Eu quero estar sempre, de qualquer forma, envolvida com o automobilismo em geral.
Todos da sua família apoiam a sua decisão de seguir no automobilismo?
Antonella Bassani – Sim, tanto meu pai quanto minha mãe sempre me falaram que se estou fazendo o que me deixa feliz, eles me darão o total apoio. E tenho esse suporte dos meus familiares: minha irmã, meus tios, dindos, primos, e principalmente das minhas avós. Apesar delas terem medo de que algo aconteça, estão sempre na minha torcida.
Júlia Ayoub – Eu recebo apoio total da minha família, porque eles sabem que esse esporte é o que eu escolhi para a minha vida. E também porque eu levo muito a sério e eles sabem que eu me dedico demais.
O Brasil, proporcionalmente, tem mais mulheres pilotos que outros países?
Antonella Bassani – Não vou mentir que antes desta oportunidade da FIA eu tinha pouca noção de como era a presença das mulheres no automobilismo fora do Brasil. Acabei descobrindo que, apesar de ainda sermos um grupo pequeno, ele vem crescendo e incentivando a cada dia mais meninas/mulheres a entrarem nesse meio.
Júlia Ayoub – A proporção de mulheres envolvidas no automobilismo fora do Brasil é maior. Isso por conta das iniciativas, como essa da FIA, que desenvolvem sempre novas pilotos. No Brasil, a gente tinha o Tuka Rocha, que foi o grande idealizador de uma categoria profissional 100% feminina, a Women Series, e estreou no Troféu Ayrton Senna de Kart, no ano passado, em Birigui. Eu inclusive fui a campeã da categoria. Ela ainda existe, mas a gente precisa de mais apoio e divulgação para aumentar o grid.
Abro aqui um espaço para completar os sentimentos de Júlia por Tuka Rocha, que faleceu recentemente: “Nunca vou encontrar palavras para descrever a importância do Tuka minha vida. Ele foi a pessoa que mais torceu pelo meu sucesso e vibrava com qualquer conquista minha. Eu tenho a honra de ser professora na escolinha dele, Tuka Racing School, o que só me enaltece como piloto e, principalmente, como pessoa. Poder ensinar é um privilégio. Eu ajudei na formação de muitos pilotos que, com certeza, vão levar a humildade e alegria do Tuka sempre, para qualquer lugar que forem. Agora, eu e o pessoal da escolinha, só temos que continuar esse legado dele.”
Principais destaques das carreiras
Antonella Bassani começou no kart com 4 anos. Entre os seus principais resultados estão o vice-campeonato do Sul-Americano de Rotax, no Perú, e o vice-campeonato Brasileiro de Rotax, ambos em 2016. Com o oitavo lugar no Rotax Max Challenge Grand Finals, considerado as Olimpíadas do Kart, em 2017, a piloto garantiu a melhor colocação brasileira em Campeonatos Mundiais.
Júlia Ayoub iniciou mais tarde, aos 11 anos. Foi campeã da categoria 100% feminina do Troféu Ayrton Senna de Kart, disputada em Birigui, SP, no início deste ano. Outra conquista marcante foi a vitória na seletiva Richard Mille/Birel de Kart, em 2018, ganhando como prêmio a vaga para disputar o Europeu e o Mundial de Kart, em 2019.
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