Imagine como é disputar o Rally dos Sertões. Hoje, dezenas de veículos se lançam em uma jornada de 4.567 quilômetros, partindo de Mogi Guaçu, SP, em direção ao Distrito Federal, passando por Minas Gerais, Goiás e Tocantins, para finalizar na cidade de Barreirinha no Maranhão. Para ter uma aula sobre o Sertões e os desafios dessa prova que é pura adrenalina, entrevistei Cacá Clauset, jornalista, empresário e piloto, além de amigo de muitos anos.
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Cacá participou de 11 Rally dos Sertões (e participou também do Dakar, tendo Amir Klink como navegador). Seu primeiro Sertões foi em 1996, com uma picape Mitsubishi cabine simples. Na época, ele explica, nem precisava de “Santo Antonio”, cintos de segurança especiais, nada disso. Era praticamente um carro original fazendo um rali de velocidade. Algo inimaginável hoje, em termos de segurança. A última participação de Cacá nos Sertões foi em 2019. Este ano, principalmente por conta da pandemia, Cacá achou melhor adiar o desafio para 2021. Por isso, vamos aproveitar que ele tem tempo para contar tudo sobre os bastidores de uma das maiores corridas brasileiras (e do mundo).
Como é participar do Rally dos Sertões?
Cacá Clauset – Trata-se de uma prova cara. Nunca tive pais milionários e sempre precisei batalhar, ir atrás. Em alguns anos eu consegui patrocínio, em outros não. Eu fui o piloto que levou mais marcas para o Sertões. Já corri de Mitsubishi (fui campeão da Geral), de Kia Sportage (ganhei na categoria com ele), de Subaru, de Nissan (Frontier), de Polaris (UTV) e até de Fiat Doblô (em um projeto grande que desenvolvi para a marca). É uma prova com muita disputa e adrenalina, além de ser incrível estar lá no meio do “sertaozão”. Por uma série de motivos parei durante 10 anos. Mas, no ano passado, quando fiz 50 anos, o meu presente para mim mesmo foi participar da prova. Comprei uma Mitsubishi L-200 Triton e chegamos a liderar a até a metade, mas aí bati em um mourão de cerca. Pau de aroeira, duro, nem se mexeu, mas detonou a suspensão dianteira. Demorou dias para picape voltar ao normal e caímos na classificação. Porém, eu não estava preocupado em ganhar: queria apenas estar lá. É uma prova desafiadora, com trechos longos. No ano passado, havia três Especiais com mais de 500 km cada um. Para mim e para muitos pilotos, o que importa é chegar ao final. Esse é o espírito dos Sertões.
Qual costuma ser o principal desafio?
Cacá Clauset – Tem dias que você fica parado no meio da prova com uma suspensão quebrada. Certa vez voamos em um salto, o carro caiu em cima de uma pedra e furou o cárter. Fomos procurar Durepoxi nas casinhas do vilarejo, mas só achamos sabão em barra. O pessoal lá nos explicou que ao amassar o sabão em barra ele viraria um tipo de Durepoxi. Conseguimos consertar o cárter assim. Terminamos a Especial com um pedaço de sabão impedindo o vazamento. Outra vez usamos ovos no radiador. Eu tinha entrado muito rápido em um trecho alagado e a pancada na água fez o radiador ir um pouco para trás, resultando em alguns furos. Fomos em outra casinha humilde, pegamos ovos e jogamos no radiador. A clara e a gema cozidas tapam os furos de dentro para fora. Incrível a sabedoria popular que acabamos conhecendo.
Alguns carros chegam a custar mais de um milhão
Quanto custa correr? É coisa só para “gente grande”?
Cacá Clauset – No início, você podia correr praticamente com o carro original. Depois o Anexo J da FIA (para segurança) passou a exigir bancos homologados, cintos de segurança de quatro ou cinco pontos, gaiola, “Santo Antonio”, chave geral, entre outros recursos. Chegamos a um nível muito alto no Sertões e isso representa custos. Por exemplo, este ano, tem equipe correndo com dois carros alugados do exterior. Sabe de quanto foi o valor? De 1.2 milhão de Euros pelo aluguel de cada um, para disputarem a ponta. No ano passado, o carro que ganhou foi uma surpresa: uma Ranger protótipo (agora é feita no Brasil) que custou 1.2 milhão de Reais. O que sobra para os “mortais” são as outras categorias, como a de Protótipos, na qual você mesmo projeta o seu carro. Um bom Protótipo usado custa hoje uns R$ 250.000.
Qual a solução mais econômica para correr de carro nos Sertões?
Cacá Clauset – Tem que fazer o que eu fiz no ano passado: comprei uma Mitsubishi L-200 Triton ER, as que correm na Mitsubishi Cup. São mais acessíveis, com preço em torno de R$ 80.000. Aí soma a preparação, peças etc, e se consegue fazer a prova com R$ 130.000. Eu acabei vendendo o carro, no final, e só sobrou a despesa da preparação e dos custos de inscrição.
Vai voltar a correr em 2021? Em qual categoria?
Cacá Clauset – Eu vou correr de UTV, que reúne os buguinhos da Polares e da Can Am. Eles são muito mais baratos e rápidos. Esse é o motivo de a categoria ter crescido tanto. Este ano estão largando 38 carros e 56 UTVs. Um UTV novo custa uns R$ 120.000. Gastando mais uns R$ 30.000 na preparação, você vai ter um carro competitivo e correr no mesmo tempo de uma Ranger. Outra novidade nos Sertões são os bugues da Giaffone Racing, sensacionais, com motor V8 de Stock Car, câmbio sequencial, tipo os californianos. Porém, também custam acima de R$ 500.000. Metade de uma Ranger? Sim. Anda tanto quanto uma Ranger? Sim, apesar de ser mais difícil de guiar por conta da traseira. Ainda assim, os “Giaffones” custam o triplo de um UTV preparado para disputar a ponta. Por ser um veículo leve, os 220 cv do motor de um UTV, que pesa uns 700 kg, tem melhor desempenho que 400 cv em um carro de duas toneladas.
Como é a dinâmica dos Sertões?
Cacá Clauset – Funciona assim: temos o Deslocamento inicial, as vezes de até 200 km. Então, um carro de apoio vai te acompanhando nesse trecho para evitar problemas. Aí vem o trecho Especial, no qual você acelera feito louco. Depois, quando acaba o Especial, vem novo Deslocamento e outro carro de apoio vem para ajudar e ver se você chegou com algum problema. Se o seu carro quebrar no meio do trecho Especial, um dos dois veículos de apoio vêm para auxiliar. Você tem tempos cronometrados, tanto no Deslocamento inicial, quanto no final. Ou seja, não conta apenas o tempo do trecho Especial, valem também os intermediários. Não existe mais apoio aéreo, foi proibido, porque as equipes com helicópteros levavam muita vantagem: iam lá de cima falando tudo para o piloto lá embaixo.
Há uma situação de controle durante a prova?
Cacá Clauset – A prova é cheia de detalhes. Precisa trabalhar com o seu emocional. As vezes se está ganhando, aí quando se percebe outro competidor se aproximando, dá um certo desespero. Existem jogadas entre equipes para desestabilizar os concorrentes. Mas com a maturidade, tudo vai se resolvendo. Só não resolve o friozinho na barriga quando estamos indo para a largada: se um piloto não sentir nada, é melhor nem estar lá. Depois, quando se está competindo, o medo desaparece. O Sertões lembra as corridas de Endurance, que são longas. Se você sai que nem doido, acaba não tendo carro, nem físico para terminar a prova. Imagine uma linha que representa 100%. Se passar para 101% você capota e está fora da prova. Se for até 98%, acha que está perdendo porque alguém está a 99%. Mas ninguém consegue andar em 100% o tempo inteiro, porque não consegue terminar a prova. No Sertões é preciso usar a cabeça, ouvir o seu equipamento, sintonizar com ele, sentir se está exigindo demais, aliviar o pé em alguns momentos e saber a hora para acelerar com tudo. Dessa forma, é possível dosar e criar uma estratégia.
O que poderia evoluir nos Sertões, na sua opinião?
Cacá Clauset – Dou aqui uma dica: a nova organização dos Sertões necessita rever alguns conceitos, priorizando os trechos cronometrados. Porque o que cansa (e onde acontecem os acidentes) são os Deslocamentos. Isso tanto para o pessoal de apoio como para os pilotos. No ano passado, terminamos uma Especial às 19 hs e ainda tínhamos que rodar 600 km para o próximo lugar, em Deslocamento por estradas péssimas, com iluminação precária. Os carros de rali não têm faróis excelentes. Chegamos de madrugada, esgotados, correndo riscos desnecessários. A organização deveria priorizar qualidade ao invés de quantidade de quilômetros, ganhando em segurança e também em prazer. De qualquer forma, é sensacional participar dos Sertões. Ano que vem eu e o meu co-piloto Jorge de Souza (outro jornalista amigo) estaremos lá correndo de UTV.
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